Todos podem ser família de acolhimento?

Não, ser família de acolhimento exige ter características particulares, para que tudo possa correr bem.

Qualidades da família de acolhimento

Em “Families considering Foster Care and Adoption” descrevem-se as seguintes características que podem contribuir para uma experiência bem-sucedida na adopção ou no acolhimento, como “ter tempo para dedicar à criança, ser inclusivo e ter a capacidade de incluir tradições familiares que honrem a família biológica da criança, bem como conseguir adequar expectativas”.

De acordo com o NTDC, os pais adoptivos e de acolhimento bem-sucedidos podem precisar de desenvolver as seguintes características:

Flexibilidade – Aprenderem e usarem um novo conjunto de capacidades e estratégias parentais que lhes permitem apoiar as crianças / jovens que sofreram separação e perda;

Nutrição – Encararem a disciplina como uma oportunidade para apoiar as crianças e os jovens na aprendizagem e no crescimento, e não como um castigo;

Adaptabilidade – Compreenderem a importância de se adaptarem às expectativas dos pais biológicos;

Paciência – Trabalharem no desenvolvimento de uma vinculação saudável por um longo período de tempo;

Compaixão – Usarem estratégias para transmitir compaixão e terem compaixão pelos pais biológicos e pelos desafios que estes podem enfrentar;

Sentido de humor – usarem o humor para gerirem o stress, expressarem sentimentos e diminuírem a tensão, conseguirem rir-se de si mesmos e não levarem tudo a sério.

Pode ser (e suspeitamos que vai ser) necessário para a família de acolhimento alterar as suas abordagens perante a parentalidade, compreender e validar as identidades sobrepostas e as experiências vividas pela criança. Será útil identificar as suas práticas parentais e perceber como podem ser ajustadas para responder às necessidades emocionais, de desenvolvimento, sociais e físicas das crianças e dos jovens que sofreram separação, perda e outras formas de trauma. A família de acolhimento tem ainda de saber dar prioridade às necessidades da criança.

Transição

A família deve lembrar-se de que quanto mais familiares forem o ambiente e as rotinas, menos difícil é a transição para a criança. Procurem falar com a comunidade ucraniana em Portugal e perceber que comem as crianças ao pequeno-almoço, quais as suas comidas preferidas, e onde podem encontrá-las. Criar um ambiente em que a criança reconhece coisas do seu país ajuda muito a criar uma transição mais tranquila.

Se não sabe ucraniano, peça ajuda a um falante da língua e crie uma série de cartões nas duas línguas com as palavras ou expressões de que a criança pode precisar: “tenho fome”, “preciso de ir à casa de banho”, “tenho medo”, “sinto-me doente”, entre outras. Estes poderão ajudá-lo nos primeiros tempos.

Procure saber:

ALIMENTAÇÃO
  • O que costuma a criança comer a cada refeição? De que não gosta?
  • Come muito ou pouco? Chora quando come? Que estratégias usar?
  • Como são feitas as restantes refeições principais?
  • A criança costuma comer ou beber leite antes de se deitar?
  • A criança come fruta e legumes?
  • A criança prefere carne ou peixe?
  • Quais são os alimentos/pratos que mais aprecia?
SAÚDE
  • Tem problemas de saúde?
  • Toma bem os medicamentos?
  • A que horas deve tomar a medicação?
  • Que fazer quando não a quer receber?
  • Recebeu vacinas?
  • A criança é acompanhada por um psicólogo?
  • Será possível manter a terapia?
QUARTO / BRINCADEIRAS
  • Quais são os seus brinquedos preferidos?
  • Tem algum boneco/personagem favorita?
  • Quais são as actividades que mais aprecia?
  • Gosta de estar/brincar sozinha ou prefere estar acompanhada?
ESCOLA
  • Já está na escola?
  • Tem dificuldades de aprendizagem?
  • Que informação dar na escola nova?
  • Como ajudar no período de transição?
NOITES
  • A criança adormece facilmente ou requer algum tipo de ritual?
  • Necessita de luz de presença, tem medo do escuro ou dorme com a porta aberta?
  • Tem pesadelos?
  • Precisa de dormir com um objecto (peluche, manta…)? Gosta de peluches?
  • Prefere ouvir música antes de adormecer?
  • Que tipo de noite tem (dorme tranquilamente a noite toda ou acorda muitas vezes durante a noite)?
HIGIENE / VESTUÁRIO
  • Sabe despir-se/vestir-se sozinha ou precisa de ajuda?
  • Toma banho sozinha?
  • Como reage quando os adultos lhe dão banho?
  • Que tamanho de roupa veste?
  • Que tamanho calça?
  • Qual o sabor da pasta de dentes usado em casa da sua família de origem ou da sua casa de acolhimento?
ROUPA E QUARTO
  • Quando saiu da casa de acolhimento ou da sua família de origem, que levou com ela?
  • Que se deve ter em casa?
  • De que brinquedos gosta?
  • Como preparar o quarto da criança?
REGRAS

Ajuda muito se os cuidadores explicarem algumas regras simples às crianças quando estas chegam. Lembrem-se de que não há nada pior do que a incerteza.

→  Explicar o que pode a criança fazer se acordar a meio da noite (como pedir ajuda e onde ir)

→  Descrever como vai ser o dia seguinte por palavras simples (acordar, tomar o pequeno-almoço, etc.). Ou deixar um calendário (que pode ser visual, se a criança ainda não souber ler) no quarto para a criança consultar, se precisar;

→  Deixar comida à mão (um pacote de leite, uma barra de cereais, uma sanduíche para se a criança acordar a meio da noite com fome) para que a criança saiba que não vai passar fome em casa;

→  Deixar o pequeno-almoço do dia seguinte preparado para que ela saiba que tencionam dar-lhe comida;

→  Não ser invasivo nem conversar muito, procurando dar tempo à criança para se habituar a si;

→  Lavar os dentes com a criança para que ela aprenda a fazê-lo;

→  Criar uma rotina consistente, mas não insista muito em regras, nem seja disciplinador nos primeiros dias;

→  Lembrar-se de que sua missão mais importante é a de convencer a criança de que está num lugar seguro;

→  Saber que muitas crianças sentem vergonha e culpa pelo que lhes aconteceu, ser gentil.

NÃO SE ESQUEÇA DE QUE:

  • Uma criança que chega a uma família depois de perder o seu país e os seus pais teve uma vivência de trauma.
  • Se a criança tinha uma boa família e se encontrava vinculada é provável que o tempo a sua adaptação se vá fazendo de modo razoavelmente tranquilo, apesar dos desafios.
  • Contudo, se a criança vier de uma casa de acolhimento na Ucrânia é provável que tenha mais dificuldades, tanto ao nível da vinculação, como no facto de poder manifestar comportamentos de sobrevivência (mentir, esconder comida, entre outros). Leia a secção Comportamentos desafiantes.

Trauma

«As crianças estão a fazer o melhor que sabem.»

Um acontecimento traumático é aquele que ameaça a integridade física de uma pessoa ou de alguém que lhe é próxima. Há muitas coisas que podem causar um trauma, desde uma guerra, a um acidente de carro ou a um tsunami, desde ficar subitamente doente, a assistir à doença de alguém querido, entre outros acontecimentos que causam sensações de medo, terror ou a ideia de que estamos sozinhos e de que ninguém nos pode ajudar.
Sabe-se que todas as crianças que são separadas das suas famílias tiveram experiências de trauma ou adversidade, com a agravante de que muitas delas foram expostas ao trauma ao longo de um período alargado de tempo (como sucede, por exemplo, a uma criança que vive numa situação de guerra).
Apesar de se saber que as consequências do trauma variam de criança para criança (dependendo do tempo a que foram sujeitas à vivência traumática, da idade que tinham e do apoio que receberam), hoje em dia os avanços na ciência demonstraram que o trauma, os maus-tratos e a negligência podem provocar alterações no cérebro em desenvolvimento.
As famílias que acolhem precisam de se informar e de conhecer as eventuais consequências do trauma no desenvolvimento da criança e de aprender a identificar comportamentos que resultam de experiências de trauma.
É com alívio que muitas famílias que acolhem relatam que começaram a compreender melhor os seus filhos e as suas reacções por vezes desafiantes ou estranhas, o que lhes permitiu encontrar estratégias de parentalidade adequadas. Isto leva a que as famílias se sintam menos frustrados e aprendam a reprogramar lentamente o cérebro da criança.

COMO RESPONDER?

As respostas calmas e consistentes de um cuidador à criança são o que lhe oferece a hipótese de se estabilizar e de se curar. É importante explicar às famílias que, por mais preocupante que seja o comportamento das crianças, este representa uma reacção normal a ameaças não saudáveis.
Embora os distúrbios do sono e a agressividade possam ser problemáticos num ambiente doméstico actual, esses comportamentos podem ter sido protectores num ambiente de guerra. O pediatra e a família devem explicar à criança que essas respostas e comportamentos são normais e esperados. O cérebro e o corpo estão a fazer exactamente o que devem para manter a criança traumatizada em segurança. As respostas da criança indicam que está a fazer o melhor que pode com as únicas ferramentas que possui. Com tempo, paciência e prática, o cérebro e o corpo da criança aprenderão novas maneiras de responder a um ambiente novo e mais seguro.

FICHAS DE APOIO

Ajudar as famílias adoptivas e de acolhimento a lidar com o trauma, American Academy of Pediatrics.

Compreender as consequências dos maus-tratos no cérebro, Child Welfare Information Gateway.

FICHAS DE APOIO NOUTRAS LÍNGUAS

Helping Your Child Heal From Trauma, Child Welfare Information Gateway (disponível em Português em breve).

Trauma Guide: Toolbox for Primary Care, American Academy of Pediatrics (textos em Inglês e Espanhol).

Saiba mais:

Consulte na secção Para ver os vídeos da Fundação Spaulding e leia as secções Criança real e Parentalidade terapêutica. Muitos dos conselhos que são dados às famílias adoptivas são também úteis e necessários para as famílias de acolhimento.

Eventuais dificuldades

 

Muitas das crianças que chegam a famílias de acolhimento partilham características entre si. Por exemplo:

  • DIFICULDADE EM LIDAR COM MUDANÇAS, como uma transferência de escola, uma professora nova, mudança de casa, etc. Como Johanne Lemieux explica, a regra de ouro é “estabilidade de rotinas, de pessoas e de sítios”;
  • DIFICULDADE EM LIDAR COM A MORTE ou a doença de alguém próximo ou de um animal de estimação (o que pode fazer reaparecer comportamentos que os cuidadores julgavam ter ajudado a ultrapassar, como birras ou pesadelos);
  • DIFICULDADE EM LER PISTAS SOCIAIS;
  • REACÇÕES DE MEDO perante coisas simples, bem como a gritos ou por vezes a uma voz mais ríspida;
  • PESADELOS ou dificuldade em adormecer sozinho;
  • Em adolescentes ou adultos, dificuldade em pôr fim a uma relação, mesmo quando esta não é satisfatória;
  • DIFICULDADE EM TOMAR DECISÕES que não sejam para agradar aqueles de quem as crianças ou os adolescentes mais gostam;
  • PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM (leia mais aqui);
  • DIFICULDADES DE INTEGRAÇÃO SENSORIAL (leia mais aqui);
  • IDADE EMOCIONAL ABAIXO DA IDADE “REAL” (segundo Johanne Lemieux, a criança terá uma diferença de dois anos a nível emocional em relação à sua idade actual).

 

Muitas famílias fazem o erro de assumir que a idade cronológica da criança e a sua idade emocional ou o seu desenvolvimento são iguais. Leia   “A CRIANÇA PUZZLE”  e saiba mais.