«A criança puzzle»

 

Eileen Mayers Pasztor, uma mãe adoptiva, mãe de família de acolhimento e assistente social, desenhou este puzzle, para procurar compreender melhor a idade real das crianças com quem contacta.

 

«Todos os adultos que interagem com crianças que viveram ou vivem em casas de acolhimento devem compreender os princípios de desenvolvimento infantil médio, expectável ​​ou “normal”, e o impacto frequentemente devastador da negligência e do abuso físico e sexual no bem-estar da criança. Enquanto assistente social que se tornou mãe de acolhimento e mãe adoptiva, aqui ofereço uma ferramenta que ajuda a analisar o desenvolvimento infantil de uma criança de uma perspectiva mais realista. (…)

Muitos anos depois de ter tido o privilégio de trabalhar com literalmente milhares de pais adoptivos maravilhosos e com profissionais de bem-estar infantil por todo o país, o meu marido e eu decidimos adoptar uma criança com necessidades especiais. O meu filho tinha cronologicamente dez anos de idade e tinha estado em duas instituições de acolhimento desde os seis anos. Os meus pais ficaram emocionados com a chegada do seu único neto, mas não demorou muito até que ficassem frustrados com os seus comportamentos, dos quais o menor problema era o seu “excesso de energia” e a sua incapacidade de se concentrar em qualquer actividade por mais do que alguns minutos. Apesar de eu os ter tentado preparar e explicar que ele seria “diferente” das outras crianças com dez anos de idade, todos sentíamos dificuldades em percebê-lo. Foi assim que inventei a “Ferramenta do puzzle”, numa tentativa de lhes mostrar que ele não tinha realmente dez anos.

A FERRAMENTA DO PUZZLE

As crianças têm oito partes no seu desenvolvimento: a sua idade cronológica; a idade que aparentam ter; a idade do seu QI; a sua idade académica (o ano em que estão na escola); a sua idade emocional; a sua idade social; se são uma combinação étnica com a família com a qual vivem e o número de anos de costumes, valores e tradições que partilham; e a idade de experiência de vida. A maioria das pessoas – como os meus pais – esperava que uma criança de dez anos parecesse ter entre 9 e 11 anos de idade, estivesse no quinto ano, tivesse uma inteligência média ou acima da média; fosse branca como nós e partilhasse os nossos valores e tradições familiares.

Contudo, as crianças que sofreram maus-tratos, negligência e abuso sexual têm partes fragmentadas. Veja o puzzle abaixo, de uma criança nascida com a bênção de bons genes e bom ambiente em casa.

O próximo puzzle é do meu filho, que tinha dez anos de idade mas parecia ter oito, pois era pequeno para a idade. De acordo com o seu teste de QI, ele processava informações como uma criança de oito anos e não lia nem escrevia uma palavra quando chegou a nossa casa. Academicamente estava em idade pré-escolar.

Em relação à confiança: porque deveria qualquer criança que foi abusada ou negligenciada por adultos confiar em nós? Pensamos nas famílias como sendo refúgios seguros, mas as crianças que entram no sistema geralmente vêem as famílias como lugares que as magoam: se a mãe negligenciou a criança quando estava drogada; se o seu namorado abusou dela porque lhe lembrava que a sua mãe fez sexo com outra pessoa que não ele… As famílias podem ser assustadoras e isso pode ser especialmente verdadeiro se a criança viveu com muitos pais de acolhimento ou adoptivos que começaram por dizer “gosto de ti” para depois pedirem a sua “remoção” (como se a criança fosse lixo ou neve) quando os seus comportamentos não se enquadravam com a sua ideia preconcebida do que são os sentimentos normais de medo e raiva.

Socialmente, depois de viver num ambiente de acolhimento com outras crianças, o nosso filho sabia fazer brincadeiras paralelas, mas não interactivas, o que o levava a enquadrar-se socialmente na idade pré-escolar. Éramos um match étnico, mas tínhamos zero anos de costumes, valores e tradições em comum. Ele queria dormir connosco porque era isso que tinha aprendido antes de ter sido enviado para uma instituição, e queria ter a certeza de que não o abandonaríamos a meio da noite. Dando outro exemplo, quando o nosso filho adoptivo veio morar connosco, percebemos que tinha o costume de dormir com os sapatos na almofada. Isto porque onde morava nunca sabia quem iria tentar incomodá-lo a meio da noite; por isso, usava os sapatos como arma ou para correr.

Para avaliar a idade de “experiência de vida”, deve-se observar a distância que vai desde a idade mais nova da criança até à sua idade mais avançada de funcionamento. No caso do meu filho, isto significaria que a sua idade mais jovem de funcionamento correspondia à sua idade emocional, que ia “desde o nascimento até aos dois anos” – quando a confiança é estabelecida. Para a maioria das crianças que sofreu abuso ou negligência, a vinculação segura e os relacionamentos de confiança parecem suspeitos. Na idade de funcionamento, percebi que deveria listá-lo como tendo 18 anos ou mais. Isso ocorreu-me porque as crianças que sofreram abuso sexual podem fazer actividades que muitas crianças e adolescentes desconhecem até ao dia em que vão ver um filme para maiores de 18 anos ou em que iniciam os seus próprios relacionamentos mais “adultos” ou íntimos.

COMO FUNCIONA ESTA FERRAMENTA?

Em todas as aulas que dou, em todas as oficinas que faço, em todas as conferências aonde vou, mostro “a ferramenta do puzzle”. Costumo fazê-lo com dois pedaços de papel. Primeiro, faço um diagrama da criança típica de dez anos. Depois faço um diagrama do meu filho. Depois disso, rasgo os pedaços e atiro-os ao chão, porque a Segurança Social e os outros “sistemas” normalmente não lidam com as crianças que viveram institucionalizadas de uma perspectiva de desenvolvimento e de maneira unificada. O registo do caso documenta a data de nascimento ou a idade cronológica. Quem conhece a criança vê a idade que ela aparenta ter. As escolas interagem com uma parte diferente da criança, e assim sucessivamente. E se um pai de acolhimento tem três filhos/as ao seu cuidado, dá por si com 24 idades e estágios diferentes de desenvolvimento que terá de proteger e acarinhar.

Considere os factores de risco para as crianças cujas peças do puzzle não encaixam. Quais são os riscos para uma rapariga que emocionalmente, socialmente e cognitivamente tem 12 anos, mas que parece ter 16? Quais são os riscos para meninos que parecem mais velhos do que as suas capacidades? E deixo outra pergunta:

QUEM É RESPONSÁVEL POR JUNTAR TODAS AS “PEÇAS”?

A partir de agora, de cada vez que olhar para a criança de quem cuida, para o número de casos que está a acompanhar enquanto assistente social, para a criança na sua sala de aula ou até no seu tribunal, pense em todas as peças do puzzle. Faça o diagrama do puzzle nos seus registos. Discuta as peças do puzzle quando se preparar para integrar as crianças numa casa. O responsável pelo caso pode não conhecer todas as peças. Algumas crianças moram com a família de acolhimento durante algum tempo antes de esta conseguir determinar as suas “idades”. Explique a situação ao juiz, para que, quando ele pensar voltar a dar os filhos/as aos pais biológicos, se lembre de que estes também têm peças de puzzle. A idade cronológica dos pais pode ser maior, mas as suas peças são muito parecidas com as dos filhos/as. Como garantimos a segurança, o bem-estar e a permanência das crianças quando enviamos “crianças puzzle” para morar com “pais puzzle”?

Fast forward: o nosso filho/a está agora na casa dos trinta e tem apoio da Segurança Social, pois não pode trabalhar. O meu marido e eu ajudamo-lo com a maioria das suas tarefas diárias. Ele tem um relacionamento maravilhoso com os meus pais de 90 anos, que o aceitaram há muitos anos, depois de terem juntado as peças do puzzle. Eu não esperava ser mãe de alguém com trinta e poucos anos de idade, mas que age emocional e socialmente como uma criança de 14. No entanto, sinto-me abençoada pelo facto de, através dos seus desafios e dos da minha filha adoptiva, ter aprendido as lições que me permitiram criar e partilhar actividades como esta do puzzle. Teria preferido, é claro, que eles não tivessem tido estas experiências. Mas os nossos filhos adultos estão seguros e somos uma família.

Espero que esta ferramenta do puzzle ajude a criar a segurança, o bem-estar e a permanência das crianças que tem a seu cargo e também dos casos que acompanham enquanto assistentes sociais».

 

Fonte: Kim Phagal-Hansel, ed., The Foster Parenting Toolbox: A practical, hands-on approach to parenting children in Foster Care, s.l.:EMK Press, 2014. Texto traduzido e reproduzido com autorização.